Jr
20, 7-9
Sl
62 (63)
Rm
12, 1-2
Mt 16,
21-27
“Quem quiser vir comigo, renuncie a si mesmo, tome sua cruz e me siga”.
(Mt 16,24)
O seguimento de Jesus
implica um descentramento, um esvaziamento do “nosso próprio amor, querer e
interesse” (S. Inácio). Para poder viver o Evangelho de uma maneira inspirada,
deveríamos deixar ressoar profundamente em nós essa expressão tão forte de
Jesus: “renunciar a si mesmo” para poder viver com mais plenitude e
transparência.
Isto não significa que Jesus tenha tomado um caminho
dolorista, no qual se valoriza a dor por si mesma. Pelo contrário, Jesus vive a
sabedoria da vida de onde brota a felicidade. Não vive para o “ego”, pois este
busca sempre seu interesse e comodidade, mas vive ancorado naquela identidade
profunda, na qual permite que a Vida flua através de si mesmo, numa atitude de
aceitação ou de sintonia sábia com o Pai.
A “renúncia a si mesmo” não é um exercício de masoquismo,
não é mutilar-se, nem buscar sacrifícios, nem anular-se..., Mas é descer até “o
dinamismo de vida” (a força germinadora) que pulsa no próprio coração, ansioso
de plenitude, de vida e de amor; é a maneira mais profunda de realização.
“Renunciar a si mesmo” é deixar de se identificar com a
tirania das mensagens de nossos pequenos “egos”, que se refletem em nossa
própria linguagem e autoimagem. A imagem tornou-se uma espécie de absoluto em
nossa sociedade. A ela servimos e por ela somos determinados. “Renunciar a si
mesmo” é um conselho sábio: significa despertar-se da ilusão e do engano,
deixar de girar em torno de um suposto “eu” que não existe, para viver a
comunhão com todos e com tudo e agir assim de um modo mais coerente. Aqui o “si
mesmo” faz referência ao nosso falso “eu”, aquilo que, iludidos, acreditamos
ser: o “eu” que busca poder, prestígio, riqueza... O desapego do falso eu é
imprescindível para poder entrar no caminho que Jesus propõe.
Aquele que não é capaz de superar o “ego” e não deixar de se
preocupar com seu individualismo (centralidade em si mesmo), frustra toda sua
existência; mas, aquele que, superando o egocentrismo, descobre seu verdadeiro
ser “des-centrado” e atua em conseqüência, vivendo uma entrega aos outros,
alcançará sua verdadeira plenitude humana. Trata-se de um ponto chave do
ensinamento de Jesus, ou seja, o convite a entrar na lógica do dom, do
descentramento do eu, da entrega gratuita, da superação da mera reciprocidade.
É a lógica aberta pelo Reinado de Deus, que alarga o
horizonte da vida humana, enriquece as possibilidades de atuação e aumenta a
criatividade no serviço. A lógica do dom implica deixar-se conduzir por Deus,
conhecido através de Jesus, que é entrega de vida, misericórdia, perdão, amor
infinito.
Nossa verdadeira identidade não é constituída pelos pequenos
“egos” que acreditamos ser. Precisamos despertar dessa ilusão e entrar em
contato com nosso verdadeiro Eu, nosso Ser e, a partir dele, olhar a vida,
olhar nossa atividade e olhar os outros, a fim de viver em sintonia com quem
somos em profundidade. É esse o modo de “ganhar a vida”.
Precisamos des-velar (tirar o véu) de nossos “pequenos eus”,
detectar e reconhecer seus dinamismos sombrios e atrofiadores, para podermos
caminhar, com mais naturalidade e leveza, para além de nós mesmos. Do
contrário, eles travarão nossa vida de uma maneira tirânica.
É saudável reconhecer esses “eus” e dialogar com eles, pois
de outra forma eles se fixarão em nós como rigidez ou nos transformarão em
fanáticos. Rigidez e fanatismo, dureza e intolerância, legalismo e moralismo...
indicam a existência de “eus” inflados que atrofiam nossa existência. A
afirmação de Jesus, portanto, nos faz descobrir que por detrás do “renunciar-se
a si mesmo” pulsa o desejo de desprender-se do “ego desumano” para poder
expandir a vida em direção a uma ousada criatividade. O caminho da fidelidade
até a Cruz vai quebrando toda falsa pretensão do “ego”, expandindo nossa vida
na direção do serviço e da entrega radical.
Morrer “com Jesus” na Cruz é morrer ao próprio “ego”, para
que o “eu oblativo” possa ressuscitar para uma vida nova. Todos os caminhos
autênticos de espiritualidade começam por um esvaziamento do ego, uma renúncia
a si mesmo, não para negar-se como pessoa, mas, pelo, contrário, para crescer
ao recuperar a verdadeira identidade na totalidade. Quando “eu me perco”, me encontro,
quando “meu eu diminui”, descubro que faço parte de algo maior, que pertenço a
Deus.
A vida não deve ser corroída pela tirania do egoísmo
mesquinho: vida é encontro, interação, comunhão... Aquele que quer salvar seu
“ego”, perde a Vida, porque se isola numa estreita jaula ou se perde em um
labirinto de inevitável sofrimento e, em último termo, de vazio e sem-sentido.
Uma existência egocentrada, embora aparentemente satisfatória para o “ego”
(inclusive até “ganhar o mundo inteiro”), não pode evitar uma sensação de
profunda insatisfação.
A morte do falso eu é a condição para que a verdadeira Vida
se liberte. É preciso passar pela morte do que é terreno, caduco, transitório
(paixões, apegos desordenados...) para deixar emergir a vida interior, a vida
divina, a vida de Deus em nós. Ao descobrir a armadilha desse “ego” atrofiador,
ao deixar de nos identificar com ele, a primeira coisa que experimentamos é uma
sensação de amplitude, onde sentimos que nosso coração se expande e descobrimos
que o horizonte é, na realidade, infinito.
Uma das manifestações da sociedade narcisista na qual o “eu”
tornou-se a instituição máxima e o eixo do universo é a chamada cultura do
“selfie”. Sociologicamente isso pode revelar a obsessão pelo protagonismo e
pela sacralização do eu.
O que vale na cultura do "self" é o modo como nos
apresentamos. Na imagem nos recriamos conforme nosso “self”, isto é, mostramos
aquilo que acreditamos ser o nosso "eu". A imagem precisa ser
perfeita, pouco importa a maneira como ela foi feita, tampouco, as
circunstâncias da construção dela. Por isso, “tomar a Cruz” é uma imagem que
quebra e esvazia toda pretensão de autoafirmação do eu.
É um momento doloroso pois a pessoa resiste e pode encher-se
de angústias e medos ao perder o falso ponto de apoio sobre eu autônomo,
impassível centrado em si mesmo. E teme o pior: perder-se, diluir-se. Somos
continuamente bombardeados de afirmações sobre a necessidade de um Eu forte e
integrado. O encontro com Cruz elimina o narcisismo, desmascara a prepotência e
nos devolve à vida cotidiana (tempo, casa, profissão, conversação) como o único
lugar no qual podemos nos encontrar com a nossa própria verdade. “Do eu
des-centrado ao eu enraizado no seguimento de Jesus”: este é o movimento de
vida plena.
Pe. Adroaldo Palaoro sj